#2 | Quando um quarto te liberta.
Eu demorei 36 anos para ler Virginia Woolf. “E daí?” você deve estar se perguntando, e talvez eu também fizesse o mesmo questionamento há alguns meses se me deparasse com esse início de relato. Porém, após minha primeira incursão em sua obra, na qual li dois livros em sequência, eu posso afirmar que ninguém deveria esperar 36 anos para ler Virginia Woolf.
Hoje eu gostaria de falar sobre meu processo de libertação a partir de um ensaio sobre um quarto. Sim, é isso mesmo, um quarto. Esse espaço comum a todas as casas, com quatro paredes, uma porta e geralmente uma janela. Frequentemente visto na literatura como símbolo de reclusão ou opressão — alguém aí ainda não leu A Metamorfose, de Kafka, ou O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde?! — foi ressignificado por Virginia Woolf como metáfora de liberdade no ensaio “Um quarto só seu”, no qual ela reflete sobre as condições das mulheres em seu tempo.
Posso afirmar que tive uma experiência quase transcendental durante a minha leitura e, embora eu tenha plena consciência de que ~ no meu caso ~ isso aconteceu porque o texto conversou muito com o meu momento de vida, duvido que qualquer mulher que se aventurar na leitura não vá se identificar com alguma parte de seu conteúdo, independentemente do que estiver vivendo.
Antes de falar sobre a meu diálogo com Virginia, julgo necessário fazer uma pequena digressão contextual: há cerca de três anos eu fiz um movimento de vida ousado, mas não incomum para pessoas do meu círculo social. Imigrei para outro país – em meio a uma crise de identidade profissional – e me impus o desafio de recomeçar em um novo ambiente, inserida em outra cultura, falando outro idioma. O problema de tudo isso é que a minha “eu do passado” não havia sido informada pela minha “eu do futuro” que recomeçar leva tempo, e talvez todo esse processo fosse mais longo do que ela havia previsto. Chame do que quiser: ingenuidade, idealismo, fuga. A verdade é que essa que vos escreve é a voz do futuro que gostaria de ter avisado que o recomeço exige paciência, coragem e muita disposição para conviver com o desconforto.
Além da crise de identidade profissional que insiste em overstay its welcome, veio também a escassez de recursos e uma imprevisibilidade financeira que mudaram profundamente minha relação com as necessidades mais básicas. Digo isso do alto de um lugar de privilégio: no meu caso, o impacto foi mais mental do que físico. Mas ainda assim, real. E é aí que entra Virginia.
“Um quarto só seu” é baseado em duas palestras que a autora deu em 1928 para estudantes mulheres da Universidade de Cambridge, uma novidade recente já que nesse período as mulheres podiam assistir a aulas em algumas faculdades de Cambridge (como Newnham e Girton, que eram femininas), mas não recebiam diplomas formais da universidade. Ou seja, elas estudavam, mas não eram reconhecidas oficialmente como membros da instituição. É uma loucura pensar que Cambridge só passou a conceder graus universitários completos às mulheres em 1948 — ou seja, 20 anos após as palestras de Woolf. Até então, as mulheres eram permitidas apenas “na periferia” da vida acadêmica: sem poder votar nas decisões da universidade, sem cargos docentes oficiais e muitas vezes com acesso restrito a bibliotecas ou refeitórios, algo que a autora critica diretamente no texto.
O ensaio mistura autobiografia, ficção, crítica e história para refletir sobre o papel das mulheres na literatura — ou melhor, sobre por que tão poucas delas haviam escrito obras de destaque. A autora argumenta que, para que uma mulher possa escrever ficção com liberdade e qualidade, ela precisa de independência econômica e autonomia intelectual — “um quarto só seu e quinhentas libras por ano”. Sem renda própria, as mulheres são forçadas a depender de figuras masculinas, o que restringe sua liberdade de criação. E sem um espaço tranquilo, são interrompidas constantemente. Tudo isso me fez lembrar de um vídeo da Isabella Lubrano que assisti após a leitura, no qual ela mostra as obras da pintora Adrienne Marie Louise Grandpierre-Deverzy, que retratou em suas telas os contrastes entre os ateliês masculinos e femininos do século XIX, deixando evidente, por meio da composição e da atmosfera de cada cena, as limitações impostas às mulheres também no campo das artes visuais.
“A liberdade intelectual depende de coisas materiais. A poesia depende da liberdade intelectual. E as mulheres sempre foram pobres, não apenas nos últimos duzentos anos, mas desde o início dos tempos.” (p.167)


No texto, Virginia analisa como as mulheres foram sistematicamente excluídas da educação, da propriedade e das instituições culturais e, consequentemente, como essa exclusão impactou a produção intelectual feminina. Por isso as nossas estantes ainda hoje seguem repletas de autores do gênero masculino considerados os grandes nomes da literatura mundial. E #ondeestãoasmulheres? Bom, a autora mostra como elas foram apagadas da história da literatura, muitas vezes limitadas aos papéis de musa, esposa ou personagem secundária. Além disso, Virginia Woolf observa que a crítica literária dominante ignorava ou diminuía a produção feminina, tratando o “homem” como medida universal.
Eu poderia ficar páginas e páginas falando sobre meus trechos favoritos, que não foram poucos (veja a lombada da minha edição). No entanto, quero que você que ficou até aqui leia o ensaio e tire suas próprias conclusões. Então, vou usar esse grande marco fundador do pensamento feminista na literatura - que só entrou na minha vida aos 36 anos - para refletir sobre o meu próprio umbigo e dizer que agora eu entendo. Se você for uma pessoa que acredita em destino ou em forças maiores ditando os rumos da sua vida, talvez você não me julgue por dizer que não abri esse livro para ler nesse momento da vida à toa. Eu precisava tomar um chacoalhão da Virginia para entender que meu momento de escassez estava contribuindo diretamente para a permanência da minha crise de identidade profissional, afinal emancipação financeira e emocional são as chaves para a liberdade intelectual.

Diferentemente das mulheres citadas por Virginia ao longo do texto, eu tenho o privilégio de ter um quarto, o problema é que suas portas e janelas estão escancaradas. Ele não é só meu. E talvez por isso eu não consiga encontrar as respostas que procuro.
Eu estou longe de ter a solução, ainda luto contra as incertezas do recomeço e muitas vezes me sinto totalmente incapaz e perdida, mas acho que ler sobre a luta de outras mulheres — especialmente de uma que escreveu há quase um século sobre aquilo que ainda ressoa em mim hoje — me ajudou a perceber que às vezes é preciso fechar a porta, ainda que por instantes, para ouvir a própria voz com mais clareza.
Afinal, às vezes, é justamente entre quatro paredes que a gente começa a se libertar.
“Tranque suas bibliotecas, se quiser; mas não existe portão, nem tranca, nem cadeado que você possa colocar na liberdade da minha mente.” (p.122)